Dados do mundo real (RWD) são os dados relacionados ao estado de saúde do paciente e a prestação de cuidados de saúde que não são coletados em ensaios clínicos randomizados controlados (ECR), incluindo fontes como: bancos de dados, dispositivos, dados de registros de produtos e farmacovigilância e consulta direta aos pacientes. A evidência do mundo real (RWE) é a evidência clínica obtida a partir do RWD, no que diz respeito ao uso, benefícios ou riscos potenciais associados a uma tecnologia em saúde, podendo ser usado para complementar os dados obtidos no ECR.

RWD/RWE oferece benefícios adicionais aos dados obtidos através dos ECRs, e são particularmente úteis para pesquisas que podem ser aplicadas à tomada de decisões em saúde. As vantagens incluem a disponibilidade de dados oportunos a um custo razoável, grandes tamanhos de amostra que permitem a análise de subpopulações e efeitos menos comuns e a representatividade da prática e dos comportamentos do mundo real.

Embora o uso de RWD/RWE ofereça um tremendo potencial, também apresenta preocupações muito reais que continuam a prejudicar sua aceitação de forma ampla, como falta de randomização, qualidade dos dados e o potencial de resultados espúrios devido à mineração de dados. Apesar de ter pelo menos 2 décadas de recursos significativos para seu uso, sua importância foi minimizada principalmente devido a essas preocupações, que podem e são contornadas com o uso de guia de boas práticas e definição de seu uso e papel no processo de tomadas de decisão em saúde.

A International Society for Pharmacoeconomics and Outcomes Research (ISPOR), através da força tarefa ISPOR/ISPE publicou um guia de boas práticas [16] que abrange 7 tópicos, como registro de estudos, replicabilidade e envolvimento das partes interessadas nos estudos RWE. Essas recomendações, em conjunto com as recomendações anteriores sobre a metodologia do estudo, fornecem uma base confiável para o uso expandido do RWD/RWE na tomada de decisões sobre cuidados de saúde.

Grande parte da inovação médica é impulsionada por ensaios clínicos tradicionais, em que novos produtos farmacêuticos e equipamentos são rigorosamente estudados e rastreados antes de poderem ser vendidos e amplamente distribuídos.

Em ensaios randomizados controlados, os aspectos da tecnologia de saúde em estudo (ou seja, eficácia ou segurança) são medidos em relação a um comparador em uma população homogênea de pacientes [17]. Esses ensaios são realizados sob condições controladas e padronizadas para minimizar o viés e possíveis fatores de confusão. Como tal, eles têm alta validade interna, ou seja, alta confiança de que qualquer diferença observada entre grupos de pacientes pode realmente ser atribuída à tecnologia de saúde sob investigação [18]. Ensaios controlados randomizados, portanto, continuam sendo o padrão-ouro na medicina baseada em evidências.

No entanto, as condições controladas (ideais) não representam necessariamente o cenário do “mundo real” com populações heterogêneas de pacientes com comorbidades e necessidades de cuidados mais complexos [17]. Uma falha inerente a este desenho de estudo é, portanto, a validade externa limitada dificultando a generalização dos resultados observados para a prática geral [18].

Desta forma, existe uma lacuna entre a pesquisa clínica dos ensaios randomizados controlados (o que aprendemos) e a prática cotidiana (o que fazemos), e isso cria uma diferença entre o que se espera que aconteça e o que realmente acontece. Mas é o que realmente acontece que importa!

Impulsionar melhorias mensuráveis na área da saúde exige que todos tenhamos nossos pés plantados na realidade. Realidade do que de fato acontece antes, durante e depois de procedimentos clínicos, intervenções e consultas. Ao descrever aspectos como as características do paciente, a carga da doença e os diferentes caminhos terapêuticos existentes, os dados de vida real (Real Word Data -RWD) ou evidência de mundo real (Real Word Evidence -RWE) pode fornecer este valor adicional no processo de avaliação e tomada de decisão.

Ademais, as evidências do mundo real podem ajudar a superar as limitações dos ensaios clínicos, fornecendo informações sobre uma seção transversal mais ampla da sociedade. Isso pode ajudar médicos, pesquisadores, tomadores de decisão e fabricantes a entender melhor seus produtos e como eles funcionam no “mundo real”. Nos diz o que realmente acontece quando os profissionais da saúde cuidam de uma grande variedade de pacientes que não se parecem com os grupos homogêneos de pacientes dos ensaios clínicos. Enfim RWD/RWE atende a muitos usos e oferece muitos benefícios para todo o ecossistema de saúde.

O propósito de se medir e utilizar RWD/RWE podem incluir a avaliação da eficiência do produto para a indicação à qual ele foi designado, a detecção de riscos e eventos adversos à medida que eles surgem durante o seu uso no mundo real. Pode-se também, comparar novas terapias ou produtos com opções já existentes no mercado, possibilitando as decisões de incorporação e a atualização de diretrizes clínicas à medida que certas populações obtêm mais benefícios do que outras.

Em um plano rápido, podemos afirmar que as evidências advindas dos estudos clínicos, principalmente os ensaios randomizados controlados somados às evidências de mundo real são complementares. Como já falamos, com os dados dos estudos clínicos randomizados controlados (ECRs), estamos essencialmente procurando ver a eficácia do produto: “Pode funcionar? É melhor do que a terapia padrão anterior?” Reforçando o conceito, são estudos realizados em um ambiente muito controlado. Já os dados/ as evidências de mundo real são diferentes. Em vez de perguntar: "Pode funcionar?" RWD/RWE pergunta: “Funciona? Qual é a sua efetividade?” O que acontece no cotidiano? Confronta-se eficácia com efetividade. Como apenas uma pequena porcentagem de pacientes participa de estudos clínicos precisamos de alguma forma demonstrar que os dados que obtivemos nos ensaios clínicos mostrem realmente como o produto se comporta nos outros pacientes que não tiveram a oportunidade de participar desses estudos clínicos. Contrasta-se "Pode?" versus “Funciona?”

Assim, é essencial termos dados RWD/RWE e ECRs por conta da grande maioria de pacientes que não participam dos estudos, pois alguns pacientes da clínica serão muito semelhantes aos pacientes dos estudos, mas inúmeros outros foram excluídos dos estudos por motivos absolutamente comuns em populações de pacientes em geral. É importante saber que o produto também é efetivo nesses pacientes excluídos.

No entanto, apesar de todos os benefícios de sua consideração em complementação aos estudos randomizados controlados, seu papel nos resultados de avaliação de tecnologias em saúde na ausência justamente de um estudo controlado randomizado devido à inviabilidade prática e ética de sua realização não é claro. Em parte, as agências de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) parecem relutantes em adotar RWD/RWE em larga escala devido à sua associação com viés de confusão e potencial falta de qualidade e transparência nos dados [19]. Estas barreiras são conhecidas e discutidas em todos os países como grandes sistemas públicos de saúde, e especificamente para as terapias avançadas o uso de RWD/RWE é uma peça-chave para o processo de avaliação, decisão e monitoramento pós incorporação.

A falta de uma orientação para órgãos de HTA sobre em que esse tipo de evidência implica, como avaliá-la e para que pode ser utilizada e um grande obstáculo que impede o uso generalizado de RWD/RWE em ATS [20]. Iniciativas tem acontecido em diferentes países, inclusive no Brasil, mas ainda existe essa lacuna de harmonização de conceitos.

A implementação de RWD/RWE é o que permite a formulação de acordos de acesso gerenciado a terapias avançadas. Em dezembro de 2022, o Ministério da Saúde estabeleceu um acordo de acesso gerenciado para o onasemnogeno abeparvoveque (Zolgensma®), onde o monitoramento do paciente acontecerá de forma ativa a partir de dados da vida real da resposta do paciente ao tratamento, sendo condicionante para a continuidade do pagamento parcelado, como também para seu cancelamento. O quadro a seguir apresenta as bases do primeiro acordo oficial formado entre o Ministério da Saúde e um fabricante no Brasil [21].

Adaptado de: Ministério da Saúde, 2022

Adaptado de: Ministério da Saúde, 2022

Esse primeiro passo na direção do uso de RWD/RWE no sistema publico de saúde é um grande avanço e servirá como base para futuros acordos, independente da área terapêutica ou doença tratada por uma terapia inovadora. A adoção oficial dos dados de vida real no processo de avaliação e incorporação das terapias avançadas no Brasil trará valor para o mercado como um todo, beneficiando os pacientes e proporcionando uma avaliação e uso eficientes dos recursos para saúde.